domingo, 20 de setembro de 2009

No Quilombo



No Quilombo


A colina de Palmares estava com uma neblina forte aquele dia. Tudo parecia tranqüilo pra um local daqueles. Desde que fugimos da fazenda Bom Conselho em Pernambuco, tem mais ou menos 2 anos, estamos aqui no quilombo. Nossa vida é simples, mas com algumas dificuldades aqui no meio da floresta tão fechada, tão linda! Lá embaixo, talvez a uns 300 m abaixo, podemos avistar o mar, lindo, enorme, azul como uma água-marinha.
Estou com 24 anos, sou natural do Congo e me chamo Kumbala. Meus pais foram trazidos ao Brasil num navio negreiro há 20 anos. Desde que nasci, ouvia meus pais e amigos da fazenda dizerem que um dia seríamos livres, teríamos fazendas pra cultivar e viveríamos em plena liberdade.
Minha mãe é uma mulher já com mais de 50 anos, mas é altiva, tem ótima saúde, teve mais de 10 filhos, contando comigo. Infelizmente na nossa situação de escravos, ao passo que nascemos, nossos donos nos vendem e isso nos afasta de nossos parentes e amigos. Ao chegar aqui no Palmares, não sabíamos o que encontraríamos ou o que. Já não víamos meu pai há mais de 10 anos, e ao chegar, minha mãe foi logo atrás de saber notícias dele. Qual foi a felicidade minha ver meus pais juntos novamente. Meus irmãs não tiveram a mesma sorte, alguns foram para as Minas Gerais retirar ouro nas minas e nos leitos dos rios, outros foram mandados para as fazendas de café da Bahia...sinceramente, não sei onde estão a maioria de meus irmãos. Isso nos faz um mal, dá uma tristeza!!!



Bem, logo ao nascer do sol, nosso trabalho começa, com fogueiras pra manter acesas, cortar carnes, limpar frutas, colher legumes, plantar macaxeira, inhame e alguns outros tubérculos. Tenho 5 filhos com Matabe, um negro alto e muito bravo, mas que me faz feliz. Somos da mesma origem o que nos uniu de forma natural.
Todos os dias, temos uma pequena reunião com o nosso “rei”, pra sabermos como estão as coisas. Muitos dos nossos homens, saem em grupos pra caçar, outros são batedores, e vão até perto do mar, ver se há algum perigo dos estrangeiros aparecerem de surpresa e nos levarem cativos novamente.
Apesar de remoto, temos consciência de que o quilombo não é totalmente seguro. Hoje, temos aqui mais de 1200 pessoas, com mais de 500 famílias de todos os grupos étnicos que vieram da África. Temos aqui homens e mulheres de todas as idades, e muitos nasceram aqui, como 2 de meus 5 filhos.
Temos alguns anciões que nos ajudam a não apagar da memória as canções, estórias e parentes de nossa terra. A partir deles, podemos fechar os olhos e imaginar como era linda nossa terra, lembrar de nossas músicas, nossas dançar e passar isso a nossos filhos com orgulho.
Nosso “rei” é de um negro de quase 2m de altura, forte como um touro, seu nome é Zumbi e tem muitos homens aqui que o respeitam como um deus. Na verdade ele é ótimo administrador e nos ajuda a racionar alimentos, fazer trabalhos em cerâmica pra guardar água, enfim, ele é como um pai pra todos nós, apesar de ter somente 30 anos. Já participou de muitos combates contra os portugueses e enfrentou com bravura os franceses em Porto Calvo nas terras de Alagoas. Enfim, ele é um herói pra nós!
Hoje, algumas mulheres estão se queixando que seus maridos saíram e não voltaram, e isso já tem mais de 5 dias, o que é muito tempo de afastamento. Como somos mulheres, não temos muito que decidir ou perguntar, mas devo ir ao centro do quilombo e perguntar o que está havendo. Vou ser a representante delas...nem sei o porquê.
Ao meio dia lá estava eu, com meu turbante colorido e manta enrolava pelo corpo, um colar de concha azuis no pescoço, o que me deixava mais ...apresentável.
-“ vim falar com o senhor pra saber dos companheiros da mulheres da casa de Mutabe”, disse rapidamente pra Zumbi, que me olhava dos pés a cabeça, sem ao menos mexer os músculos da face.
-“Escute mulher, volte a sua cabana e tranqüilize as outras. Seus maridos foram um pouco mais longe, mas mandaram um batedor e estão bem. Em dois dias voltarão. Vá”.
Voltei e esperamos por mais 3 longos dias...e nada! Minha mãe, acordou cedo e foi até a sede...voltou algumas horas depois com os olhos vermelhos e o rosto inchado de tanto chorar. Ela não queria falar, mas diante de tantos olhos aflitos, ela disse:
“ nossos homens não voltarão...estão com o deus sol. Foram pegos pelos franceses e para não mostrar a entrada do quilombo, eles se entregaram e sofreram até a morte. Suas cabeças foram decepadas e enterradas em troncos numa altura de 3m e espalhadas num raio de quilômetros e em diversas direções, para que pudéssemos achá-los de alguma forma”.
Dizendo isso, minha mãe baixou a cabeça e foi rezar no altar mor.
A dor e a insegurança tomaram conta de todos nós, e em 24 anos de nascida, mesmo vivendo em senzalas e agora no quilombo, pela primeira vez tive medo de verdade.
Depois desse dia, tivemos que diminuir as fogueiras, e apagar tudo durante a noite, para que ninguém conseguisse visualizar o quilombo pela luz. Com certeza, os franceses estavam no nosso encalço.
Meus filhos e outras crianças não podiam mais banhar-se no rio sem a presença de adultos, e tudo passou a ser feito e planejado para que não chamássemos a atenção. O quanto duraria isso? Ninguém sabia responder. Poderia durar dias...semanas...anos...O que mais importava era a força que tínhamos em acreditar na liberdade, em vislumbrar um Brasil rico, com seus filhos livres, vivendo em condições iguais de sobrevivência, de respeito, de convivência. Acreditar nisso era nossa esperança ao acordar e olhar aquelas colinas do quilombo e enxergar um mar azul lá embaixo.


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