Olhava da janela da velha camioneta o arrozal a perder de
vista onde semeados se distinguiam algumas figuras humanas. Agora os corpos
estavam mais próximos da estrada e podia observar com mais pormenor os rostos
tranquilos. E para meu espanto era com serenidade que via baixar-se uma mulher
que em pleno campo urinava com as pernas ligeiramente flectidas. Não teria
alternativa, pensei. Com horror senti que a minha bexiga ia atingindo o seu
limite máximo. Já dava sinal. Quis abstrair-me do problema e imediatamente o
meu pensamento divagou até Macau de onde tinha partido para esta viajem a
Sichuan, na parte central da China.
Em Macau estava a salvo, na escola onde leccionava português
a adolescentes de treze anos. Ainda assim a minha mente recuou mais uns anos e
lá estava eu no altar. Sempre no altar. Como numa ratoeira da qual não
conseguia livrar-me. A música a tocar e eu a aproximar-me cada vez mais do
altar. Do abismo.
E voltei à camioneta e a Sichuan. Melhor assim. Mesmo com a
bexiga a doer e a implorar alívio. Mas como? No arrozal?
Por fim chegamos a uma povoação. Havia uma espécie de café e
ao lado o que me pareceu ser uma casa de banho pública. Cheia de esperança
empurrei a porta que tinha um desenho de uma mulher. Entrei. Eram de facto,
mulheres. Durou uma fracção de segundo o meu regozijo pois de imediato me
apercebi que a sanita era um orifício quadrangular no centro do compartimento.
Cerca de uma dúzia de respeitáveis senhoras, novas e velhas se agachavam
espalhadas pelos lados do quadrado de cimento respondendo ao apelo da mãe
natureza. Não que se visse nada de escandaloso, anatomicamente falando. E mesmo
que algo se vislumbrasse por entre as dobras dos vestidos não me iria
certamente, surpreender. No entanto a minha bexiga sempre sofreu de timidez tanto
quanto de fraca capacidade reservatória. Saí o mais rapidamente que pude sem
ser indiscreta para não perturbar a paz a quem dela necessitava e merecia.
Era altura de almoçar e eu estava já faminta. Viajava com um
grupo de chineses de Pequim que também estavam descobrindo os encantos da
província chinesa. Sentamos. Todos os rostos estavam sorridentes. Não havia
motivos para tristeza. Em breve iríamos satisfazer os desejos do estômago. As
travessas fumegavam quando a empregada franzina as colocou na mesa. E de
rompante vinte braços enérgicos manejando pauzinhos caíram sobre elas. Um pouco
hesitante, ainda de sorriso retribuidor no rosto, esperava com o meu par de
pauzinhos na mão uma brecha entre membros frenéticos para alcançar uma pontinha
de travessa com comida. Quando finalmente consegui restava um pouco de arroz
chao-chao que tentei equilibrar até aos lábios sem grande sucesso. O chá de
jasmim era bom. Mas teve o efeito nefasto de ampliar a minha urgência de
urinar. Saí à frente dos outros saciados parceiros de viagem.
Avistei umas árvores a uns cem metros de distância e
inspirando profundamente para arranjar coragem lá fui decidida a resolver o meu
problema fisiológico.
Foi tão grande o alívio que só uns segundos depois dei conta
que não tinha papel higiênico. Como farão as trabalhadoras dos arrozais e as da
casa de banho pública? Talvez como eu, naquele momento, deixando pingar. E a
visão das gotas sobre a terra batida fez-me regressar ao altar. Altar que me
esperava inundado de lágrimas. Lágrimas que choveriam dos meus olhos durante
dias e semanas a fio. Até decidir partir. Para Macau. Com a promessa de nunca
mais chorar na puta da vida.
No regresso, de corpo leve, pela ausência de urina e de
comida dirigia-me à camioneta muito serena. E o coração deu um pulo no peito. O
quê? Partiram sem mim?!
Ali estava eu. Sozinha. Sem falar uma única palavra de
sichuanês. Perdida no coração da China. No meio de quatro circuitos de rios e
desfiladeiros. Completamente perdida.
Ao fim de oito anos de promessa cumprida os meus olhos
encheram-se de lágrimas que tentei aguentar sem êxito, até transbordarem num
grosso caudal.
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