segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Perdida na China I

Olhava da janela da velha camioneta o arrozal a perder de vista onde semeados se distinguiam algumas figuras humanas. Agora os corpos estavam mais próximos da estrada e podia observar com mais pormenor os rostos tranquilos. E para meu espanto era com serenidade que via baixar-se uma mulher que em pleno campo urinava com as pernas ligeiramente flectidas. Não teria alternativa, pensei. Com horror senti que a minha bexiga ia atingindo o seu limite máximo. Já dava sinal. Quis abstrair-me do problema e imediatamente o meu pensamento divagou até Macau de onde tinha partido para esta viajem a Sichuan, na parte central da China.
Em Macau estava a salvo, na escola onde leccionava português a adolescentes de treze anos. Ainda assim a minha mente recuou mais uns anos e lá estava eu no altar. Sempre no altar. Como numa ratoeira da qual não conseguia livrar-me. A música a tocar e eu a aproximar-me cada vez mais do altar. Do abismo.
E voltei à camioneta e a Sichuan. Melhor assim. Mesmo com a bexiga a doer e a implorar alívio. Mas como? No arrozal?
Por fim chegámos a uma povoação. Havia uma espécie de café e ao lado o que me pareceu ser uma casa de banho pública. Cheia de esperança empurrei a porta que tinha um desenho de uma mulher. Entrei. Eram de facto, mulheres. Durou uma fracção de segundo o meu regozijo pois de imediato me apercebi que a sanita era um orifício quadrangular no centro do compartimento. Cerca de uma dúzia de respeitáveis senhoras, novas e velhas se agachavam espalhadas pelos lados do quadrado de cimento respondendo ao apelo da mãe natureza. Não que se visse nada de escandaloso, anatomicamente falando. E mesmo que algo se vislumbrasse por entre as dobras dos vestidos não me iria certamente, surpreender. No entanto a minha bexiga sempre sofreu de timidez tanto quanto de fraca capacidade reservatória. Saí o mais rapidamente que pude sem ser indiscreta para não perturbar a paz a quem dela necessitava e merecia.
Era altura de almoçar e eu estava já faminta. Viajava com um grupo de chineses de Pequim que também estavam descobrindo os encantos da província chinesa. Sentámo-nos. Todos os rostos estavam sorridentes. Não havia motivos para tristeza. Em breve iríamos satisfazer os desejos do estômago. As travessas fumegavam quando a empregada franzina as colocou na mesa. E de rompante vinte braços enérgicos manejando pauzinhos caíram sobre elas. Um pouco hesitante, ainda de sorriso retribuidor no rosto, esperava com o meu par de pauzinhos na mão uma brecha entre membros frenéticos para alcançar uma pontinha de travessa com comida. Quando finalmente consegui restava um pouco de arroz chao-chao que tentei equilibrar até aos lábios sem grande sucesso. O chá de jasmim era bom. Mas teve o efeito nefasto de ampliar a minha urgência de urinar. Saí à frente dos outros saciados parceiros de viagem.
Avistei umas árvores a uns cem metros de distância e inspirando profundamente para arranjar coragem lá fui decidida a resolver o meu problema fisiológico.
Foi tão grande o alívio que só uns segundos depois dei conta que não tinha papel higiénico. Como farão as trabalhadoras dos arrozais e as da casa de banho pública? Talvez como eu, naquele momento, deixando pingar. E a visão das gotas sobre a terra batida fez-me regressar ao altar. Altar que me esperava inundado de lágrimas. Lágrimas que choveriam dos meus olhos durante dias e semanas a fio. Até decidir partir. Para Macau. Com a promessa de nunca mais chorar na puta da vida.
No regresso, de corpo leve, pela ausência de urina e de comida dirigia-me à camioneta muito serena. E o coração deu um pulo no peito. O quê? Partiram sem mim?!
Ali estava eu. Sozinha. Sem falar uma única palavra de sichuanês. Perdida no coração da China. No meio de quatro circuitos de rios e desfiladeiros. Completamente perdida.
Ao fim de oito anos de promessa cumprida os meus olhos encheram-se de lágrimas que tentei aguentar sem êxito, até transbordarem num grosso caudal.

Ana Marques

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